Impostos agravam desigualdade social
O sistema tributário brasileiro é injusto. O volume exagerado de taxações indiretas tem pelo menos dois efeitos daninhos: aumenta a concentração de renda e contrai a capacidade de compra das pessoas, inibindo o crescimento da produção, do comércio e da prestação de serviços. Um estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE, mostra que o Fisco já engole quase 30% dos rendimentos de famílias mais pobres, que ganham até dois salários mínimos. Quem ganha mais de 30 salários contribui com muito menos: apenas 18%. A economista Maria Helena Zockun, da Fundação Instituto de Pesquisas da Universidade de São Paulo e diretora da Ordem dos Economistas de São Paulo, é uma estudiosa do assunto respeitada internacionalmente. Nesta entrevista ela propõe como alternativa ao sistema vigente um modelo tributário mais focado em taxas diretas, como o Imposto de Renda. Mas não como o imposto existe hoje, no Brasil. O Imposto de Renda deve ser, por assim dizer, imparcial. “Todos devem pagar o Imposto de Renda de acordo com os seus rendimentos, sem qualquer tipo de dedução. As escolhas pessoais de consumo não devem interferir na contribuição devida ao Estado”, defende. Para ela, os regimes especiais de tributação, como o Simples e o sistema de lucro presumido, também são inadequados para um País como o Brasil.
Segundo Maria Helena Zockun, o primeiro é um imposto que incide em cascata e o segundo faz com que alguns contribuintes paguem menos, como pessoa jurídica, do que os assalariados. “Toda a vez que o Governo inventa um regime especial para simplificar a arrecadação, cria uma distorção”, diz. Entrave à modernização “O fator que mais contribui para aumentar a produtividade das empresas é a divisão do trabalho. Os impostos em cascata estimulam exatamente o contrário. Como a incidência desses impostos aumenta de acordo com o tamanho da cadeia produtiva ou número de transações, as empresas, para pagarem menos, preferem verticalizar a produção em vez de terceirizar, tirando as chances de participação das pequenas e médias neste processo”.
Principais distorções – “Hoje, nas cadeias longas de produção, a incidência de Cofins, PIS e CPMF chega a representar mais de 10% do custo final dos produtos. Os impostos em cascata são uma das principais distorções do sistema tributário brasileiro. A sua participação na carga global começou a aumentar ao longo da década de 80 e principalmente depois da Constituição de 1988. A preferência por este tipo de taxação tem motivo. A Constituição forçou Brasília a dividir grande parte da arrecadação federal com estados e municípios. Ocorre que os gastos, as obrigações do governo federal, não foram reduzidos. Os recursos do Tesouro para atender as demandas do País, assim, minguaram, e a maneira mais fácil de arrecadar, na visão do governo, era taxar o faturamento das empresas. Não haveria problema se a participação destes impostos na carga tributária total não tivesse crescido ao longo dos anos.
Em 2000, do total arrecadado com tributos indiretos, os impostos em cascata já representavam 38%, o que é um exagero. Como nos outros países, em geral, eles não existem, as empresas brasileiras não conseguem competir para valer”. Concentração de renda “A exagerada participação dos impostos indiretos criou outra distorção grave, também para o mercado interno, pouco discutida no Brasil. Quando a tributação recai sobre o consumo, não há discriminação das faixas de salários das pessoas, ou seja, todos pagam, independente da renda que tenham. Hoje, há uma tributação excessiva sobre os mais pobres. Um estudo do IBGE mostra que famílias que ganham até dois salários mínimos mensais entregam 28% da sua renda ao fisco, enquanto os trabalhadores pertencentes à faixa mais alta de renda, de mais de 30 salários mínimos, são taxados em 18%. E estes dados se referem a um período anterior aos últimos aumentos de alíquota da CPMF e da Cofins. Quer dizer que atualmente a carga é ainda maior. Isso é gravíssimo, pois o aumento da concentração de renda encolhe o tamanho do mercado interno e todos perdem. As empresas, por exemplo, ficam impedidas de ganhar em escala de produção. O País, com produtos menos competitivos, exporta menos”.
Favorecimentos – Outras distorções do modelo tributário são os regimes especiais de tributação, como o lucro presumido. Muitos contribuintes se beneficiam destes regimes e acabam pagando menos impostos do que aqueles trabalhadores que recebem seus salários de acordo com a CLT, por exemplo. Toda a vez que o governo inventa um regime especial para simplificar a arrecadação e a vida do contribuinte simplesmente no preenchimento de papéis e nos trâmites burocráticos, com certeza cria uma distorção. Quem recebe como pessoa jurídica e é tributado pelo lucro presumido paga menos imposto, proporcionalmente à sua renda, do que aquele com renda semelhante, mas com registro certinho na carteira de trabalho. O Simples é um desastre para o Brasil, pois é um imposto em cascata, que incide sobre o faturamento das empresas. Do ponto de vista da eficiência econômica, do crescimento da produção, e da criação de empregos, é nefasto. É uma visão muito superficial achar que uma coisa é boa apenas por ser mais simples, mais fácil”.
Problema político – “Enquanto os tributos diretos recaem sobre a renda e o contribuinte sabe o quanto está pagando, os indiretos são impostos camuflados, que incidem sobre o consumo, sobre a poupança, as transações financeiras. São os impostos preferidos pelos políticos, que não têm muito interesse em que o contribuinte saiba o quanto está pagando. Saber o quanto se paga em impostos traz a consciência de que se é contribuinte, que é do seu bolso que sai o dinheiro para a saúde, o salário do funcionário público e do deputado. Quando o contribuinte sabe o que está pagando, ele cobra muito mais. No Brasil, ninguém sabe em que momento e quanto paga de impostos. Na prateleira dos supermercados, o preço vem cheio, sem discriminar as taxas tributárias”.
Sonegação – “Levantamento da Fipe mostra que o sistema tributário alcança apenas 56% da base tributável. Isso significa que o fisco arranha apenas um pouco mais da metade do total de contribuintes que a lei manda tributar. O resto escapa pelos seus dedos. Neste universo, estão enquadradas, por exemplo, as empresas inadimplentes, as que dão meia nota ou as que apresentam apenas uma parte de suas operações à Receita. Se o governo conseguiu, nos últimos anos, arrecadar o equivalente a 30% do PIB, sobre uma base tributável bem menor, significa que está impondo alíquotas para extrair 54% do PIB, o que é uma barbaridade. O não pagamento de impostos acontece porque a população em geral não tem renda suficiente para cumprir as obrigações que lhe são impostas pelo fisco. Há um problema adicional: as altas taxas de juros. De uma forma geral, o retorno do capital das empresas é muito inferior às taxas cobradas nos empréstimos bancários. As fontes oficiais de financiamento, que cobram juros menores, estão fechadas para empresas inadimplentes junto ao fisco, que são em grande número. E para ter acesso ao mercado de capitais uma condição básica precisa ser satisfeita: o suprimento de informações confiáveis e convincentes, de modo continuado, para permitir a avaliação de risco pelos financiadores. Essa condição não pode ser atendida pelas empresas que só sobrevivem se parte de suas operações não for apresentada ao fisco. O Brasil é um país pobre, com renda per capita próxima de R$ 500 mensais. Com exceção de poucas empresas, muito produtivas, as demais não geram valor adicionado suficiente para remunerar os fatores de produção e recolher a totalidade de tributos cobrados. O fracasso do programa Refis, que excluiu mais da metade das empresas por falta de pagamento de impostos federais atrasados, é uma prova de que os brasileiros estão com a sua capacidade contributiva exaurida”.
Descoberta recente – “A carga tributária sempre foi alta no Brasil. Sempre encareceu o produto brasileiro. Mas esta percepção só se generalizou no início da década de 90, com a abertura da economia, quando os empresários começaram a notar que não conseguiam competir com os produtos importados. Quando a economia é fechada, as distorções são pagas pelo consumidor porque ele não tem a alternativa de comprar produtos importados e não pode fazer comparações de preço e qualidade”.
Reforma Tributária – “O desenvolvimento econômico está atrelado à implantação de uma ampla reforma tributária. Mas isso depende do grau de conscientização da sociedade sobre os malefícios que o atual sistema impõe. O assunto é discutido há dez anos, mas não avança. A situação só tem piorado. As distorções mais graves se acentuaram e a carga tributária aumentou, reduzindo em muito as possibilidades de se construir um sistema racional, com bases de incidência e alíquotas visíveis. Ultimamente chegou-se até a pensar que a adoção do câmbio flutuante poderia compensar as desvantagens tributárias, tornando o tema da reforma ultrapassado. Mas isso não é verdade. As distorções tributárias têm muitas dimensões cuja correção só pode ocorrer no bojo de mudanças de grande envergadura dentro do próprio sistema. Muitos ainda não compreenderam os problemas gerados pelo sistema tributário. As visões ainda são muito superficiais, nebulosas. A reforma não saiu do papel porque não se descobriu a dimensão do problema com que se está lidando. É preciso baixar o gasto público para que o governo possa sobreviver com arrecadação menor. Ocorre que a pressão dos grupos de interesse contra as reformas do Estado é muito grande. O governo ainda não promoveu para valer as reformas da Previdência e do funcionalismo público. Três anos de déficit na Previdência consumiram toda a receita obtida em nove anos do programa de privatização. Enquanto esta situação não se alterar vai ser difícil fazer a reforma tributária.
Projetos – “O projeto em discussão na Câmara dos Deputados que pretende transformar o PIS num imposto sobre o valor adicionado está longe de ser o ideal. Tem uma vantagem. Se passar, vai aumentar a carga tributária do setor de serviços, um setor que paga relativamente pouco imposto: não recolhe ICMS e IPI e paga menos CPMF por ter menos elos na cadeia produtiva. O grosso dos tributos é pago pelo setor industrial”.
Sistema ideal – “O sistema tributário deve ser neutro, ou seja, distribuir uma mesma carga para todos os setores e não penalizar uns mais do que os outros. O ideal é que seja mais concentrado no Imposto de Renda da Pessoa Física, já que este é o único imposto que respeita a capacidade contributiva do cidadão. Aquele que ganha mais paga mais e vice-versa. O ideal seria acabar com as deduções. A classe média reclama muito do Imposto de Renda mas pode escolher entre matricular as crianças numa escola pública ou numa privada. Se optar pela segunda, pode deduzir os gastos na hora de declarar o Imposto de Renda. O pobre não tem escolha e nem renda para colocar os filhos em escola privada e não deduz nada quando seu imposto é recolhido, direto na fonte. O mesmo acontece com as despesas médicas. As opções de consumo dos contribuintes não deveriam interferir na contribuição para o sustento da máquina do Estado. A carga tributária de um País deve ter uma relação com o seu nível de renda. Estudos feitos pelo IPEA indicam que a carga tributária para um país como o Brasil deveria estar em torno de 23% do PIB. Este era o índice no final dos anos 80. Desde então a carga só vem aumentando e a legislação transformou-se num emaranhado. A reforma, agora, é mais difícil do que nunca”.
Sílvia Pimentel